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sexta-feira, 29 de julho de 2016

Na mesa do café

Dentro dos copos
a cerveja borbulha até à espuma.
Atrás dos óculos, os teus olhos
escondem lágrimas antigas.
A mesa do café parece um filme
policial: 
a tua mão
teima em fugir-me e eu teimo em 
persegui-la.
Fica sabendo, amor,  que
no fim o polícia agarra sempre 
o ladrão.


PedRodrigues

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Num dia de sol


Naquela tarde o mar estava sereno. As ondas eram pequenas espumas intermitentes, contando os segundos entre os gritos dos miúdos que construíam castelos à beira da água. Eu olhava-os e imaginava salões enormes, feitos de areia molhada e conchas, uma varanda onde pudéssemos ver o mar de mãos dadas - não só naquela tarde, como em todas as tardes do resto das nossas vidas. Ali tudo era nosso. O teu nome entre as rochas, escondido, com medo da subida das águas, seria para sempre essa certeza dura - mesmo nos dias de tempestade, em que tudo se revolta em tom de batalha. Mas, naquela serena tarde, estavas tu, de cheiro a mar no cabelo, a contar o tempo das ondas e a tentar adivinhar quantos horizontes tem o infinito. No céu nuvens desenhavam formas aleatórias que dizíamos serem coisas concretas: animais, rostos, máquinas. Tudo se compunha de acordo com a nossa imaginação: assim fosse a vida. Naquela tarde tudo era nosso. O tempo jogava a nosso favor: tínhamo-lo todo só para nós. Podíamos moldá-lo à nossa maneira, construí-lo juntos, como os castelos dos miúdos feitos com a areia molhada. E abrir uma janela, com uma varanda e vista para o mar, onde nos pudéssemos sentar, até sermos velhinhos, a inventar formas à teimosia das nuvens.  

 

PedRodrigues

domingo, 17 de julho de 2016

Flores selvagens


Eram flores selvagens. Amores perfeitos não nascem em vasos. São livres, como a brisa que ainda sopra no verão da nossa infância. Nesse tempo em que tudo parecia mais simples. Onde tudo parecia fácil, como fechar com força os olhos e imaginar outros lugares: praias lindíssimas, lugares na lua, casas junto a quedas de água. E, hoje, tu ao longe, como os amores perfeitos, tão selvagem, tão dona de ti, tão senhora de todas as razões. Eu aqui, atrás do vidro da janela, a olhar-te a crescer, em silêncio, com medo de te assustar, ou de provocar um vento que te leve. O amor passa-nos depressa, como o queimar de um cigarro. Ficam as cinzas do que noutros tempos ardeu. Não há chama que dure para sempre. Não há chama que dure sem consumir outros elementos. Tu de um lado do vidro, eu do outro. As tuas cores sem se misturarem com as minhas. O teu cheiro pelas almofadas e pelos lençóis ainda amarrrotados de todas as batalhas de amor. Não há guerra que dure para sempre. No campo, depois da guerra, nascem as flores, por entre as beatas. Falaram-me de haver uma forma de atravessar o vidro sem me cortar. De um país para lá do teu reflexo. A viagem é difícil. Talvez porque depois do adeus não há jornadas fáceis, talvez porque as saudades se descuidem líquidas pelos olhos, como um aguaceiro a anunciar outros começos. Lembrar-me-ei para sempre da rebeldia selvagem com que fugias à prisão dos vasos. E eu que te queria a crescer dentro de uma caixa, junto do meu coração. Eu que te queria, mas tu não.

 

PedRodrigues

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Pray for the world



O mundo, como o conhecemos, parece estar a mudar. Faz-me lembrar a velha história da Arca de Noé, que nos contavam na catequese, em que um grande dilúvio varria a terra, levando à sua repopulação. Dizem os radicalistas que, por vezes, de tempos a tempos, a humanidade precisa de um novo começo. Ao encontro destas teorias bíblicas vai o mundo de hoje. Tudo parece estar a mudar. Assistimos, diariamente, a matanças desenfreadas. Ninguém é poupado: nem homens, nem mulheres, nem crianças, nem velhos. O medo vai-se instalando de mansinho, por mais que se apregoem motes como “não nos renderemos”, “não nos esconderemos”, “não teremos medo”. No fundo, todos tememos o que se está a passar e olhamos por cima do ombro, amedrontados, procurando suspeitos. No meio da carnificina, alguém há-de ser o carrasco. Muitos apontam os inocentes - porque não podemos ser todos inocentes - e discriminam pela raça, ou religião. Quem os pode culpar? O medo tem destas coisas e, quem o promove, sabe o que está a fazer.  É a velha máxima: “dividir para conquistar”.
Os atentados de ontem, em Nice, só vêm dar mais força a essa ideia de mudança feita de sangue.  Por muito que culpemos o movimento cobarde de uma organização criminosa, não creio que a cabeça do dragão se corte por aí. É um erro acharmos que, por se enviarem tropas para o terreno e se bombardear uma região, os atentados irão acabar. Não. Há, claramente, uma entidade superior a tudo isto que tomou conta do mundo sem que déssemos conta. Alguém que, entre os homens, brinca de Deus. Estes atentados são estilhaços de uma bomba que rebentou silenciosa e que, mais cedo ou mais tarde, irá mudar tudo o que conhecemos. Cuidado, há ventos de mudança - e não creio que nos levem a bom porto.  


PedRodrigues

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Onde começam os mexericos

Não satisfeita com a sua vida, começou a procurar falhas em vidas alheias.
Talvez porque seja mais fácil apontar os erros dos outros, que lidar com os que cometemos. Talvez porque seja mais fácil procurar uma distânica de segurança: apontar ao longe o  naufrágio, mesmo estando o nosso barco a meter água. Talvez porque apregoar a individualidade, a diferença, a supremacia, seja muito bonito, mas é mais fácil esconder as inseguranças no quintal da vizinha. Talvez porque seja mais fácil fugir a sete pés, que encarar a dureza da realidade. Talvez porque seja mais fácil pisar os outros, que encontrar razões para nos elevarmos. Talvez porque o medo fale mais alto, e a coragem não nasça em plantas rasteiras. Talvez porque a vida seja difícil, e se procure a saída mais fácil. Talvez porque seja mais fácil invejar, que ser feliz com o que se tem. Talvez.
Não satisfeita com a sua vida, resolveu mudar.

PedRodrigues

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Campeões

Estamos a dez de Julho. Um mês depois do dia de Portugal, voltamos a ter motivos para festejar. Hoje, por razões diferentes, é um dia importante para o nosso país. Pode parecer ridículo dizer isto, mas é verdade: hoje voltamos a festejar o dia de Portugal. Vivemos numa geração demasiado desapegada à história; uma geração do mediatismo e do imediatismo, em que todos parecem querer aparecer hoje, agora, e viver tudo de uma vez. Compreende-se que assim seja: com o mudar dos tempos, mudam-se as vontades. Mas não esqueçamos de quem somos e de onde viemos. Muitos referem-se a nós como um anexo de Espanha, como um povo de gente pequena, um povo de pedreiros e mulheres-a-dias, um povo de labregos que não têm onde cair mortos. Mas eu não me esqueço das aulas de história que tive na escola, e não me lembro de ter sido a França a descobrir o caminho marítimo para a Índia, ou a Inglaterra a descobrir o Brasil. Tenho orgulho em ser de um país, de um povo que, apesar de se ter deixado reprimir pelo tempo, descobriu o mundo e criou os mapas que todos conhecemos. Tenho orgulho de ser de um país que expulsou Espanhóis, repeliu Franceses e se tornou num pequeno país independente e temido por muitos. Os anos passaram e fomos caindo na desgraça do esquecimento geral, fomos perdendo importância. Hoje somos a cauda da Europa e estamos a ser assolados com novas afrontas: sanções económicas, ataques a uma nação pequena em bicos dos pés, talvez com o intuito de a derrubar. Mas hoje, dia dez de Julho, um jogo de futebol mostrou ao mundo que somos mais que esse tal anexo de Espanha, ou o país do Cristiano Ronaldo, ou da senhora que limpa a casa, ou do taxista baixo, de bigode. Pode parecer estúpido, repito, mas este jogo veio calar muitas bocas, veio relembrar muita gente que Portugal é um país de gente aguerrida, que não se deixa cair. Hoje, um herói improvável, - como muitos heróis, em muitos momentos improváveis da nossa história enquanto país - mostrou ao mundo a força de uma nação. Não estamos por cá para ser o cu da Europa, nem o anexo de ninguém. Estamos de pedra e cal, venha quem vier. Por mais que nos tentem enterrar, por mais que nos tentem diminuir, por mais que dos tentem desrespeitar. Lembrem-se, tal como o autor do golo de hoje, o Éder(zito), nos lembrou: até a estrela mais pequena brilha na noite escura. 



PedRodrigues

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Titanic

[Ao meu velho amor]

Enquanto te afundas
      no esquecimento
                     lembra-te:
                      a vingança é
                      um prato que
                      se serve gelado.


PedRodrigues

quarta-feira, 6 de julho de 2016

A bicicleta do Martim

O Martim tem oito anos.
No outro dia, enquanto estávamos à mesa, perguntava-lhe
-Não tens vergonha de ainda andares com as rodinhas na bicicleta?
Ao que, prontamente, ele respondeu
-Não!
-E os teus amigos não gozam contigo?
-Não quero saber daquilo que os outros dizem.
Apesar das dezenas de anos que nos separam, o Martim deu-me uma valiosa lição: seremos sempre julgados por aquilo que fazemos, - ou não fazemos - mas cabe-nos a nós a valorização da opinião alheia. Estaremos, do início ao fim, sujeitos a esse tribunal clandestino. Seremos constantemente bombardeados pelas ideologias dos sábios, dos reguladores da moral e dos bons costumes, dos donos de todas as verdades e dogmas. Seremos julgados independentemente da nossa opinião: quer sejamos apologistas do verde, ou do vermelho, ou da cor de burro quando foge. Todos se acham donos e senhores da verdade porque, no fundo, todos o são. Assim como Tolstói dizia que cada coração guarda um amor, cada cabeça guarda uma ideia. De maneira que o mais importante, no meio deste caos, é que sejamos fiéis à nossa opinião - à nossa verdade - e que não liguemos às buzinas alheias. O resto? O resto é como as rodinhas na bicicleta. Com, ou sem elas, sempre que cair serei gozado. Portanto, vou como me apetecer.


PedRodrigues

sábado, 2 de julho de 2016

Revolução

Queriam prender-me
ao chão. Diziam-me que
tinha de ser terra
quando eu sabia ser mar
Queriam que fosse de 
ficar. Mas eu sempre
fui de partir
Eu sabia ser céu
sabia ser sol
sabia ser luar
sabia-me infinito
como o horizonte
de todos os lugares
Queriam-me preso
entre as fronteiras
de algum país. Mas
eu escolhi ser mundo
escolhi não ser dias,
nem horas, nem segundos
Não tenho limites,
por mais correntes 
que me tentem reprimir:
não sou de ficar,
serei sempre
de partir.



PedRodrigues

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Morrer de amor

Quanto mais se amavam, mais se matavam. 
Para eles, o amor era um veneno dado em doses pequenas. Iam-se matando lentamente, sem saberem. Quanto mais se beijavam, mais os seus corpos fraquejavam. Valerá o amor a morte? Tudo indicava que sim. Valerá a distância a vida? Seria a morte o último reduto a conquistarem? Tudo indicava que sim. 
De que vale uma vida sem ela?
- Nada, digo-te eu.
- Preferes morrer?
- Já te disse que a prefiro a ela.
- Não foi isso que perguntei…
- Sim, foi.
A morte é um verbo com muitas cores, ao contrário da ideia popular. A morte tem muitas caras, muitos corações, muitos verbos. A morte não é apenas a ausência de vida. Morremos também quando caímos no esquecimento de quem nos ama. A morte não é apenas uma pistola carregada, apontada à nossa cabeça. A morte é a falta daquele toque, daqueles beijos, das pregas daqueles lábios. É a ausência das texturas, dos meridianos contados na pele. A morte é uma espécie de molécula, como o oxigénio, que respiramos, mas não vemos e quando a tentamos agarrar: apenas o vazio. A morte é um vazio.
- Eras capaz de viver sem ele?
- Não.
- Mesmo sabendo que ele te pode matar?
- Ele é a minha última paragem.
- Não pensas continuar?
Não.
O amor, por si só, não encurta distâncias; não conquista fronteiras; não começa guerras. O amor é um substantivo, muito usado pelos poetas e outras pessoas malucas. O amor é o dono do hospício onde todos julgamos dançar em silêncio. O amor. O amor. O amor. Dizem-nos de ele ser uma palavra no dicionário e pintada nas paredes das cidades. Dizem de ele ser uma fotografia de um abraço, com um pôr-do-sol muito bonito no fundo. O amor deve ser uma força: sem ser massa por aceleração, ou sim: dois corações que aceleram e se atraem um ao outro. Uma frequência bonita. Uma melodia assobiada pelos dias. Um sorriso. O amor deve ser um sorriso. Ou a causa da morte de alguém. 
Morrias por amor?
- Morremos todos os dias.
- Não foi isso que perguntei.
Tens de rever as tuas perguntas. São bastante monótonas. 
- Só queria saber se morrias por amor.
-Todos amamos alguma coisa. Viver é morrer, todos os dias, um bocadinho. Faz as contas.
Quanto mais se amavam, mais se matavam. No início era o verbo. No final, também.


PedRodrigues